Quatro meses de guerra genocida de Israel

18 de fevereiro 2024 - 10:16

Israel já lançou sobre a Faixa de Gaza uma quantidade de explosivos equivalente a duas bombas atómicas como as de Hiroshima destruindo 70% dos edifícios do enclave e matando mais de 27.000 pessoas. Uma enorme catástrofe com impacto político na história da região e do mundo. Por Gilbert Achcar.

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Foto de Motaz Azaiza @azaizamotaz no X.
Foto de Motaz Azaiza @azaizamotaz no X.

Passaram quatro meses desde a operação “Dilúvio de Al-Aqsa” e o início da guerra genocida sionista que se seguiu. A situação ultrapassou agora a Nakba de 1948, tanto em termos de intensidade da catástrofe como em termos de horror. Consideremos os factos apresentados pelo relator especial das Nações Unidas sobre o direito a uma habitação adequada num artigo notável publicado pelo New York Times no dia 29 de janeiro: Israel lançou sobre a Faixa de Gaza uma quantidade de explosivos equivalente a duas bombas atómicas do tipo das que os Estados Unidos lançaram sobre Hiroshima em 1945.

Este bombardeamento maciço levou até agora à destruição de aproximadamente 70% dos edifícios em todo o enclave e de 85% na sua metade norte. Como resultado, 70.000 habitações foram completamente destruídas e 290.000 habitações foram parcialmente destruídas. Se a isto acrescentarmos a destruição das infraestruturas de serviços como a água e a eletricidade e o sistema de saúde, incluindo os hospitais, bem como a rede educativa (escolas e universidades), os locais culturais e religiosos e os edifícios históricos, o resultado é um apagamento quase total da Gaza palestiniana. Esta situação é semelhante ao apagamento da maior parte dos vestígios da vida palestiniana através da destruição de cerca de 400 cidades e aldeias nos 78% da terra da Palestina entre o rio e o mar que foram tomados pelo Estado sionista em 1948.

O relator da ONU propôs acrescentar um novo crime à lista de crimes contra a humanidade, um crime a que chamou "domicídio". Mencionou casos em que este conceito se aplica no século atual: Grozny, na Chechénia, completamente destruída pelo exército russo de Vladimir Putin no início do século; Alepo, na Síria, destruída pelo exército russo aliado às forças iranianas e do regime de Assad em 2016; e Mariupol, na Ucrânia, destruída pelo exército russo nos primeiros meses da invasão russa da Ucrânia em 2022. À lista do relator deve juntar-se Fallujah, no Iraque, a maior parte da qual foi destruída pelo exército norte-americano em 2004, o segundo ano da ocupação do Iraque, bem como Mosul, no Iraque, e Raqqa, na Síria, ambas destruídas pelas forças norte-americanas e seus aliados durante a guerra contra o Estado Islâmico, em 2017.

O "domicídio" de Gaza difere, no entanto, de todos estes casos, na medida em que não afetou apenas uma cidade, mas todo o enclave, incluindo todas as suas cidades - uma área muito maior do que a de qualquer uma das cidades acima mencionadas. O "domicídio" de Gaza foi acompanhado de um genocídio contra a sua população. Não apenas matando uma elevada percentagem dela: cerca de 27.000 no momento em que escrevemos, ou seja, mais de um por cento da população total, segundo os números fornecidos pelo Ministério da Saúde de Gaza, que não têm em conta o número de pessoas que morrem em consequência das condições sanitárias catastróficas criadas pela agressão, agravadas pela restrição do acesso da ajuda humanitária à Faixa por parte de Israel. Estas condições tornam uma grande parte dos palestinianos feridos, cerca de 70.000, vulneráveis à morte ou a consequências permanentes que poderiam ter sido evitadas se o tratamento necessário tivesse sido disponibilizado. O mesmo se aplica ao número de pessoas que sofrem de doenças naturais e que já não recebem os medicamentos de que necessitam para sobreviver, e cujo número não está disponível.

Acrescente-se a tudo isto que aproximadamente dois milhões de pessoas, ou seja, 85% da população da Faixa de Gaza, foram deslocadas das suas casas para a cidade de Rafah e outras zonas adjacentes à fronteira egípcia. Mesmo que a agressão parasse subitamente hoje e os deslocados fossem autorizados a ir para onde quisessem dentro da Faixa de Gaza, a grande maioria deles seria forçada a permanecer no seu abrigo atual devido à destruição das suas casas. Além disso, o exército sionista prepara-se agora para completar a sua ocupação da Faixa de Gaza invadindo Rafah, agravando assim inevitavelmente a situação dos deslocados, obrigando-os a deslocarem-se de novo para outra zona do sul da Faixa de Gaza, de forma a colocá-los sob o seu controlo e a separá-los do que resta das instituições que o Hamas dominava desde que assumiu o controlo do enclave em 2007.

Tudo isto é, de facto, uma enorme catástrofe que ultrapassa a Nakba de 1948 em termos de intensidade e de horror, uma nova Nakba cujo impacto político na história da região, e mesmo do mundo, não será menor do que o da Nakba anterior, como o futuro certamente provará. Perante este cenário de horror, a verborreia da administração dos EUA e de outros governos preocupados com as consequências desta nova Nakba, ou melhor, o seu balbuciar sobre uma "solução" para a questão palestiniana, refere-se a uma extensão à Faixa de Gaza do estatuto da Área A da Cisjordânia, colocando-a de novo sob a supervisão da Autoridade Palestiniana que, por sua vez, está sob controlo direto de Israel, juntamente com a continuação da instalação de forças de ocupação na maior parte da Cisjordânia (Áreas B e C) e a sua intervenção militar à vontade na Área A. Chamar "Estado" a uma entidade que, na realidade, goza de menos soberania do que a que foi concedida aos Bantustões da África do Sul durante a era do Apartheid, não passa de uma tentativa miserável de encobrir a responsabilidade de Washington, juntamente com a maioria dos Estados europeus, no encorajamento da guerra genocida sionista e na sua capacitação militar – pois Israel não teria certamente sido capaz de levar a cabo tudo o que acima se descreve sem o apoio militar dos EUA.


Gilbert Achcar é professor de Estudos do Desenvolvimento e Relações Internacionais no SOAS da Universidade de Londres. Publicado originalmente em árabe no Al-Quds al-Arabi a 6 de fevereiro de 2024.

Traduzido para português pelo Esquerda.net por Carlos Carujo a partir da versão em inglês publicada no blogue do autor.